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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Marmita Gate': Fraude é exceção; Doações ajudam combater a fome e pobreza

Uma das imagens de marmita usadas pela iniciativa Alimentando Necessidades, no centro da polêmica #marmitagate - Reprodução/Twitter
Uma das imagens de marmita usadas pela iniciativa Alimentando Necessidades, no centro da polêmica #marmitagate Imagem: Reprodução/Twitter

Denise De Sordi*

29/09/2022 11h53

Desde o dia 26 de setembro, o caso "marmita gate" é um dos mais comentados nas redes sociais, virando notícia na imprensa.

A história poderia ser mais uma dessas de tipo lamentável que viralizam na internet e depois caem no esquecimento. Porém, a suposta falsificação de uma campanha de arrecadação de valores expressivos para a suposta ação individual de distribuição de marmitas a pessoas em situação de rua, em Blumenau (SC), gera danos expressivos à forma como olhamos para outros tipos de iniciativas de distribuição de alimentos que são sérias, já consolidadas e que fazem parte da história de como o Brasil passou a ser considerado, até pouco tempo atrás, um exemplo mundial no combate à fome e à minoração da pobreza.

Casos como o "marmita gate" ganham relevo não só pela repercussão atingida, mas porque nos permitem perceber as formas pelas quais nos engajamos em nosso papel de cidadãos em meio ao cenário atual do país, no qual 33,1 milhões de brasileiros não têm o que comer, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN).

Retornamos ao Mapa da Fome, e a urgência e a gravidade da situação exigem que escolhamos apoiar ativamente os projetos e ações sociais que são transparentes e que serão frutíferos de forma imediata e, principalmente, no longo prazo, inspirando políticas públicas e contribuindo para a eliminação não só da fome, mas das situações que geram a pobreza.

Como nos lembra Josué de Castro, autor do célebre "Geografia da fome" (1946), a fome não é condição natural, decorre dos sistemas econômicos e sociais e tem relação direta com a pobreza.

O Brasil já foi considerado referência mundial no combate à pobreza e à fome, pois políticas e programas sociais exitosos, a exemplo dos extintos Bolsa Família (BF) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), assim como o paralisado Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), foram construídos em diálogo e com a participação da população organizada que expressou suas reivindicações de forma democrática, ocupando-se de temas que são centrais para o desenvolvimento econômico e social brasileiro.

A exemplo da distribuição de terras e da produção de alimentos sem veneno e que não contaminam o meio ambiente - agroecológicos; pautas do Movimento Sem Terra (MST) e do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a reivindicação por habitações seguras; pauta do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Brasil (MTST) e a preservação do meio ambiente e da vida; pauta dos movimentos dos povos indígenas.

É, portanto, nos espaços dos movimentos sociais e de suas campanhas, que também precisam de voluntários e de engajamento, que as reivindicações podem ser encaminhadas e colocadas na agenda no Estado enquanto forma de exercício da cidadania e de fortalecimento da democracia.

A democracia é valor fundamental para o combate à pobreza e à fome, é este sistema que nos permite exercer nossa cidadania e reivindicar melhorias e mais justiça social, ou seja, a cidadania é por essência uma ação coletiva, não se realiza de forma individual.

Por isso, se voluntariar é válido, mas para ser prática efetiva precisa ocorrer de forma inserida em projetos coletivos que tenham a capacidade de gerar espaços de reivindicação junto ao Estado.

Sobretudo em momentos como o atual, no qual o Estado se faz ausente e são os espaços de organização coletiva dos movimentos sociais que entram em cena, fazendo o que o Estado deveria fazer e inovando com iniciativas que possuem em vista o combate à pobreza e à fome de forma multidimensional.

Foi assim que as Cozinhas Solidárias do MTST surgiram ainda em meio à pandemia de covid-19 e hoje funcionam a partir de doações em projeto homônimo exitoso.

Presentes em onze estados, com trinta e duas unidades em funcionamento, o próprio nome "Solidárias" denota sua diferença: a entrega dos alimentos é a urgência do dia, mas não é o projeto final, a solidariedade é o impulso para a ação, mas é também um projeto de sociedade que orienta uma complexa rede de relações e conexões que buscam promover a soberania e a segurança alimentar, que só podem existir a partir de relações mais justas e solidárias.

Para tanto, as Cozinhas Solidárias adquirem a maior parte de seus alimentos de pequenos agricultores, assim, as famílias camponesas passam a ter como planejar o escoamento de sua produção, permitindo não só que se fixem no campo, mas que realizem o processo de transição agroecológica.

Ou seja, que progressivamente fiquem livres da compra e do uso de agrotóxicos, passando a produzir alimentos saudáveis para nossa saúde e sustentáveis para a preservação do meio ambiente.

As Cozinhas Solidárias do MTST promovem a instalação de hortas comunitárias e aproximam as comunidades, porque passam a ser um espaço de convivência, aprendizado e acolhida, tanto para os que se voluntariam, quanto para os que recebem as refeições diariamente, tornando os bairros e periferias onde estão instaladas lugares mais seguros nos quais as pessoas se conhecem e se apoiam.

Em algumas unidades há creches e reforço escolar. Nas cozinhas, as pessoas atendidas aprendem sobre Direitos Sociais e como podem se organizar para reivindica-los.

A produção das milhões de marmitas mensais que são distribuídas gratuitamente atendem aos trabalhadores informais, a exemplo dos entregadores de aplicativos de comida que muitas vezes fazem seu trabalho com fome, camelôs, desempregados, idosos, crianças, a população LGBTQIA+ e pessoas em situação de rua.

É um projeto que tem impacto direto na vida de milhões de pessoas todos os dias e que tem potencial para se transformar em política pública, renovando práticas antes exitosas, mas que agora não existem mais.

Direcionar nosso apoio e nossa ação voluntária para os projetos dos movimentos sociais é uma forma efetiva de combatermos não só a fome, mas a pobreza e de aprendermos nos inserindo em realidades que ainda não conhecemos.

Há uma gama de projetos que podem ser escolhidos e que estão comprometidos com o presente e o futuro do país, tendo impacto direto e real na vida de milhões de pessoas, promovendo redes de atuação em torno das temáticas da terra, da produção de alimentos, da preservação ambiental, da moradia e do combate à pobreza e à fome.

A consciência individual é importante, mas deve se manifestar na adesão a projetos coletivos, evitando que casos como o "marmita gate" voltem a ocorrer, e compreendendo que combater a pobreza e a fome passa, necessariamente, pela defesa da democracia e de um projeto de sociedade mais justo e igual para todos.


*Denise De Sordi é historiadora é doutora em História Social, autora da tese "Reformas nos programas sociais brasileiros: solidariedade, pobreza e controle social (1990-2014), especialista nas relações entre Estado e Sociedade com foco nas políticas e programas sociais de combate à pobreza no Brasil contemporâneo. Atualmente está como pesquisadora dos Programas de Pós-Doutorado da COC/ FIOCRUZ e da FFLCH/USP desenvolvendo pesquisas sobre o Auxílio Brasil, o empobrecimento e a soberania alimentar a partir do trabalho das cozinhas solidárias e comunitárias.